segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Beatitude Hipócrita

A hipocrisia é a lei que rege nossas vidas. É nela que nos baseamos na hora de tornar legítima nossa irresponsabilidade latente. Sempre dá certo.

Veja você que, muitas vezes, o Diabo é acusado de crimes que não cometeu. Constantemente levantamos falso testemunho contra ele. Pecamos contra o Gramunhão, como se a culpa de todos os males viessem dos calabouços do inferno. É o alívio psicológico que tranquiliza a alma. A auto-enganação.

A beata que não tinha seus pedidos atendidos estava certa de que era o Diabo quem conspirava para que suas preces fossem ignoradas. Esfregava o terço como se fosse a lâmpada do Alladim. Aí, como nem Deus nem o gênio apareceram, ela concluiu que seria preciso radicalizar. Pensou num jejum. Daquele feito pelo bispo nordestino e que comoveu o Brasil. Quem sabe a misericordia divina não viria a seu favor?

Diante do sacrário ela firmou compromisso. Ficaria um mês à base de pão e água, até que suas preces fossem ouvidas. Preces que ninguém nunca soube o que continham. Tratava-se de um segredo entre ela e o Criador. Como o celibato é agradável a Deus, também daria uma pausa nas relações durante esse tempo. Não sabia se o marido compreenderia. Sabia apenas que o plano era infalível. Até podia imaginar, além das nuvens, o rosto do Senhor chorando, comovido com tamanha devoção. Tanto imaginou que ela própria chorou. Ficou com dó de si mesma. Coisas de beata. Normalmente elas se admiram.

Feito o voto a beata foi direto até a padaria. Comprou mais pão que o normal. E como o padeiro não fez nenhuma observação sobre isso, ela achou que deveria se explicar. Contou que fizera um acordo com Deus. Pagaraia a graça recebida na base da abstinência. Por isso queria os pãezinhos mais murchos. Nada de prazeres. Afinal de contas, o jejum é exatamente o antônimo do prazer.

O olhar solidário e compassivo do padeiro deu à beata a certeza de que estava na direção certa. Certeza que ficou redundante quando contou pra vizinha sobre o plano sagrado. Teve as mãos beijadas, recebeu uma profunda reverência. Foi canonizada pela dona Maria. Esse tipo de adulação era tudo que a beata queria. Em nenhum momento ela pensou em abster se do ego.

Depois de uma semana de jejum ela já não fazia os serviços de casa. Não tinha forças. Passava o tempo esparramada na cadeira de balanço da varanda. Achava-se nobre. Grande. Lembrou-se da reação do marido, que a chamou de louca quando ela negou um carinho preliminar investido por ele. Foi assim por dois dias. No terceiro dia o bafo da esfomeada estava tão insuportável que o marido decidiu dormir na sala. Deixou que a beata dormisse com os anjos. Mas a beata já não tinha tanta certeza da coerência de seus atos. Via isso como a provação pela qual passam os santos. E pensou no verdadeiro sentido do sacrifício. Talvez ele só valha quando necessário. Como um mal que vise um bem maior. De modo que não possa ser usado como uma chantagem, para mostrar que a vontade de um pedido atendido está acima das necessidades humanas. Talvez estivesse errada. A fome, que normalmente faz com que as pessoas percam a razão, parecia trazer juízo àquela mulher.

Na manhã seguinte a beata acordou numa cama de hospital. Estava recebendo soro e a filha disse que estava feliz por ela ter tomado um prato de sopa. Pobre beata. Chorava copiosamente. Foi traída pelo próprio inconsciente e quebrou a promessa sem perceber.

- Não fui eu! - dizia ela. - Foi o Encardido que me fez faltar com Deus. A culpa é dele. Esse demônio seduziu meu inconsciente e me enganou. Sou a própria Eva comendo a maçã do Paraíso!

Nunca pensou no fato de que Eva comeu do tal fruto por ambição. Que a fome não pode ser vista como uma tentação do inferno, e sim como necessidade do corpo. Também não se lembrou que assumir as consequências dos próprios atos é uma necessidade do caráter do ser humano.